segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Como desaparecer completamente

Escute conversas terríveis sem opinar enquanto sua alma é sugada.
Deliberadamente deixe mensagens fermentando 2 dias quando todo mundo sabe que você não tira a cara do celular.
Diga que vai. Não vá. Não avise.
Pegue a primeira roupa do armário para não desistir de tomar banho e diga que não se importa com o que vão pensar.
Tenha um plano A, difícil demais, desista. Tenha um plano B, comum demais, aceite.
Durma tarde. Durma pouco. Durma demais.
Furte chiclete na fila do mercado.
Assuma com orgulho que você se autossabota.
Deixe que os outros te interpretem errado, explicar dá preguiça e eles não valem a pena.
Encontre um diagnóstico para culpar suas falhas e justifique-se com ele sempre que possível.
Julgue sua própria produção e a esconda de todo mundo.
Aprenda a conviver com uma casa bagunçada.
Repita diálogos destrutivos para si mesmo numa base diária e crie subversões imaginárias. Deixe tudo se embaralhar e esqueça como as coisas realmente terminaram.
Reclame.
Invista tempo em ideias inconcebíveis e paralize-se diante do mundo real.
Seja grosseiro com quem tenta te ajudar e rasteje por quem te maltrata.
Coma fast food. Dispense o copo dágua. Fume.
Assista traços de personalidade originais te abandonarem e finja demência.
Nunca perdoe seu ex.
Reanalise até achar um motivo para dizer "não".
Acostume-se a inventar desculpas automaticamente ao invés de admitir que não quer.
Crie vícios e medos teimosos. Seja você mesmo teimoso e inflexível.
Faça mais visitas ao passado do que aos amigos.
Perca prazos e vencimentos. Culpe a rotina.
E mais importante
Deixe tudo se registrando silenciosamente, cubra com um tapete anatômico, durma e redurma em cima de frustração e não se mexa.
E não se mexa.
E não se mexa.

2 comentários:

Luiz Carlos Sahge disse...

"Prometi que jamais esqueceria da minha infância.
Prometi a mim mesmo que jamais me esqueceria.
Eram os livros que faziam isso, as historias amargas e tolas de crianças que não eram crianças, que eu lia quando era pequeno e sabia que o autor devia ter esquecido.
Agora me apego a minha infância como se fosse um talismã".

Cara Letícia...

Nas suas linhas...Fiquei tentando me lembrar, não da minha infância, mas de mim mesmo, onde foi que me deixei no processo de crescer e entrar nessas rotinas de autoausência de mim.
Vez por outra eu tento cair pra dentro em espiral, a cata de pequenos pedaços com que eu possa minimamente reconstruir um pouco do que perdi quando adolesci e vendi o meu Eu por um Nós, que não me compensa a sensação de que tanto mais vazio tenho por dentro quanto mais me preencho do mundo de fora.

Mas eu fico perdido, fascinado demais relembrando das coisas que esqueci e não chego ao âmago da coisa que sou.Daí o sinal abre, o despertador berra, o prazo vence, eu aperto a gravata e acelero e o que sou ou o que eu seria fica sempre ali, no meu eterno vir-a-ser.

Obrigado por inquietar.

Ainda reverente ao ler você...

Kristal disse...

Meu Deus, Letícia, Meu Deus.
Chorei por dentro (e quase por fora) lendo isso.
Me li inteira.
Que horror, Letícia.
Que real.