terça-feira, 14 de março de 2017

Entrevista com o Universo

    Num dia de semana, enquanto o sol brasileiro queimava minhas panturrilhas não depiladas e mal dispostas no encosto do sofá, acometeu-me, tal qual uma visão sagrada, o Universo. Ele mesmo, sem forma nem voz, tão ameno quanto insuportável. Sentou-se ao meu lado, agora não lembro se também no sofá ou na dobra interna de minha orelha, e ordenou-me fazer-lhe oito perguntas. Pediu que eu fosse pertinente e honrasse sua inusitada boa vontade, ao que confeccionei essas imbecis indagações, um pouco minhas e espero que de mais alguém, servindo o milagre para algo. Fique a par quem desejar dessa inverossímil tarde de terça-feira e sua incasualidade.

P: A vida é uma coisa boa?

R: A vida pode ser uma coisa boa. Bom e ruim são construções humanas e delas abstenho-me visto meu caráter invariavelmente neutro. Não é de importância para mim se um namoro terminou, se uma nação foi extinta ou se uma vegetal rompeu a barreira do solo. Mas há, sim, um enorme número de coisas boas sobre a vida, quando se é uma pessoa, e enxergar esse fato não é habilidade de tudo o que respira, tampouco uma obrigação.

P: Qual premissa faz com que você mantenha a Terra um planeta que existe?

R: A Terra é um planeta muito singular e defeituoso, seria uma pena vê-lo acabar a qualquer momento... (risos). A verdade é que o acaso estendeu-se por tempo o suficiente e o que agora temos é uma configuração minimamente complexa e caótica. As hierarquias e prioridades moldaram-se de tal forma, que a espécie humana julga-se acima das demais em inteligência e natureza. Drenando os recursos comunitários para poucas mãos e alienando uns aos outros através da ignorância, é depositada cada vez mais importância em detalhes desimportantes. A tecnologia faz exponencialmente mais por eles e, na contramão, o contato com o real diminui. Há também os que tentam abster-se disso tudo numa falsa moral e negam o que há de mais selvagem em si. É realmente insustentável. Mas, em suma, não há premissa. Se a Terra ainda existe é um acaso.

P: É possível reverter a miséria humana?

R: É possível passar dez minutos debaixo d'água? Eu diria que sim. Mas qualquer um sairia com vida? Seria uma experiência frutífera? A miséria humana, por penosa que seja, permeia a personalidade de todos vocês. O erro. A própria evolução vem do erro, confusões genéticas criam variação e o mais forte sobrevive. O erro fortifica e é o caminho mais seguro. É possível, porém, encaminhar essa miséria para onde mais beneficie os sistemas.

P: Conceitos como amor, arte, saudade e perversão podem ser encontrados em outro local que não a Terra?

R: Desculpe-me. Não estou apto a responder essa pergunta. Ou talvez você não esteja apto a lidar com a resposta.

P: O que é arte?

R: Falar sobre arte é como escrever sobre uma tempestade. Há muito que os termos não conseguem conter. A própria sensação, intrínseca à arte, é mais do que palavra. Dentre outras muitas coisas, arte é um modo de sobrevivência e uma obsessão inerente ao humano. Existe justa polêmica entre vocês sobre o que pode ser classificado sob a qualidade artística ou não. Se me permite, compartilho da experiência empírica minha peneira fina contra a dúvida: arte é um apanhado de atenção em meio à restante distração. A arte pode ser ou não bela, pode ser simples ou complexa, tradicional ou inventiva, de vanguarda ou nostalgia, fresca ou a mofar. O mandatório é que surta efeito motor em quem com ela interage, mesmo que uma breve, até brevíssima, percepção do arredor ou, queiramos nós, de si próprio.

P: A religião é, necessariamente, uma falsa moral?

R: Atrelar religião a qualquer adjetivo ou definição não compete a mim, que já me expliquei neutro, mas a vocês, enquanto humanidade e individualmente. Em termos simples, a religião é o que você dela faz. Parece-me que alguns anos atrás coisas fantásticas sucederam-se, e assim pôde-se documentar em livros, hoje colocados em instância máxima e quase política nas doutrinas. São esses documentos tão primitivos quanto atemporais, tal o grau de universalidade de seu conteúdo, podendo-se pensar que fossem, então, mais de expressão artística e menos de narração fiel e preocupada. Tamanho foi o impacto dessas palavras e tantos os anos até aqui, que cada homem de poder moldou o que leu para melhor organizar, lucrar, cuidar ou até calar, conforme seu julgamento. Se a religião é uma falsa moral, foram vocês que assim o fizeram.

P: Quando algo se torna real?

R: Quando alguém nele pensa.

P: Isso basta?

R: Para tornar-se real? Sim. Para tornar-se percebido, não. Talvez a pergunta seja: o que é real? Mas você já usou suas oito perguntas.




Um comentário:

Luiz Carlos Sahge disse...

Cara Letícia,

Parece que o universo reserva a si o direito de não responder certas perguntas, senão com enigmas dentro de outros enigmas disfarçados de charadas...
Na única oportunidade que tive de lhe perguntar qualquer coisa, ela (sim. Ela. Porque a mim pareceu o universo ser absolutamente feminino) me respondeu uma única pergunta com um emaranhado caleidoscópico de outras indagações emn uma única resposta:

P.Eu estou desperto ou sonhando?
R. Ah, eu não vou te responder essa por uma razão muito simples: Cessaria toda a sua necessidade de fazer perguntas e eu não quero te mutilar dessa maneira! A busca por essa resposta, meu caro, é o fundo e tema principal de toda a existência do homem...