segunda-feira, 13 de abril de 2020

interruptor

     na quarentena forçada em meu quarto uma solidão dimerizável sem controle avança enquanto escureço. cresce conforme quer, retira-se quando recorro a amigos, encolhida corcunda dedos rápidos cabeça ofegante não estou mexendo quase parte nenhuma do corpo. transpiro ansiedade e como depressão, a comida me dá enjôo com os novos remédios, a comida preferida tem gosto de cinzas. numa interação digital envio uma cara chorando de tanto rir que me respondem com uma cara com dois corações no lugar dos olhos. não me acostumei a ver amigos muitos nem sempre. fazer amizade comigo mesma se tornou um alívio, é processo já iniciado. quero escrever que estamos quase íntimas mas troquei o espelho para um canto do quarto em que corro menos risco de trombar comigo. deitada na cama sem pés, colchão no chão de madeira, vejo o reflexo da luz amarela que explica cada móvel, peças de minha época de escola. tenho lido livros guardados desde o ensino médio em busca do tempo perdido em passatempos inúteis, quando meu cérebro era uma esponja e se debruçava sobre sujeiras que pouco me qualificaram para enfrentar a dureza de uma pandemia. 
     sei dosar quanto de notícias assistirei, quantas páginas lerei, quantas horas de pós-graduação on-line e quantos quilos de chocolate derreterei, mas perco a mão estupidamente quando me adentra um bocado voraz de solidão. apago a lâmpada principal e crio aconchego de abajur, tomo o banho mais quente que minha pele suporta e escrevo uma carta de amor de próprio punho em comemoração a um ano de namoro com o menino mais encantador que conheci. já tentei sarar fazendo as unhas, polichinelos, cantando, apertando meu cão contra meu colo. já tentei sarar lavando a louça, doando o desnecessário, me masturbando, ouvindo elza soares. já tentei sarar vendo vídeos sobre todo desconforto psicológico e associando meu quadro a minha época, minha infância, meus genes e meus hábitos. segundo o teste de personalidade big five realizado hoje, tenho motivos para me orgulhar de mim e de fato estou orgulhosa de algumas coisas que tenho feito. já tentei agir como se fosse tudo fantasia e fui genuinamente feliz por dois dias seguidos. 
     deito-me aquecida ao lado de um copo d’água sem cor, sem brilho, sem gosto. é o maior milagre do mundo, água é o mesmo que mãe. abraço um travesseiro do tamanho de uma pessoa e busco por acidente o pé de meu namorado com os meus. faço um carinho proposital na parte interna de meu antebraço e procuro dissolver-me em sono. o tempo irá passar e mais cedo do que imaginava os amestradores raios de sol iluminarão cada pedaço dessa prisão. se apenas eu conseguir adormecer. 

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