quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Humanos não falam

   Você não percebeu que eu tinha morrido.
     Embaixo da fundação eu gritei até a terra me engasgar. Mas você dormia em outro continente, não pôde ouvir.
     Pedi para as minhocas me levarem até a superfície, Ou um copo d'água já estaria ótimo, eu disse, mas elas não deram ouvidos e trocaram os pés pelas mãos – ou as mãos pelos pés? Eu de cabeça para baixo no escuro molhado.
     Com dó de mim, os fungos conversaram entre si, Façamos o que podemos, o que sabemos. Eles beberam meus mucos e ceiaram minha testa, lamberam os ossos e deixaram o coração para o fim. Essa parte está dura, eu ouvi de um deles. E pensei, Como é bom estar morta e enterrada para você. Quem de nós mais se beneficiou?
     Eles me fluidificaram e me fizeram microeu, e sem escolha fui sugada por uma raiz adjacente. Subi por túneis de seiva e miniaturas de artéria em verde claro. Obrigada, fungos, eu disse. Mas não saiu voz porque micróbios não falam.
     Depois um azul no céu se escancarou em minha frente quando desabrochei pela manhã em cinco pétalas burras. Um azul que eu reconheci em cada tom. Eu conheço toda nuance dessa paleta, azul é como uma língua nativa para mim.
     Brotei em seco e esperei a chuva.
     Mas só veio você me procurar.
     Sem saber do processo, buscou por minha forma humana e zangou-se ao encontrar sequer os restos. Depois de tantos anos, veja você, o que esperava de mim?
     Flores também não ouvem som, não vêem coisas.
     Mas o seu corpo bípede vibra unicamente, nada escapa por completo da natureza. Sei que eram seus pés e, quando você chorou, fez-me aumentar.
Você me escolheu e me colheu num impulso de misericórdia: Que florzinha insistente, você pensou alto, e eu encolhi, fraca e lilás. Só não me devore mais essa vez, já sou tóxica. E não me leve para casa, morrerei sob sua vigília num copo com água e cloro.  
     E não posso morrer de novo. Não posso morrer de novo. Não me mate sem perceber de novo.
     Você apertou os olhos, pensou ter ouvido alguma coisa, Mas flores não fazem som, nem vêem coisas. Dessa vez você disse em voz alta.
     E desfez seus dedos em pinça e me viu retornar à fundação. É um longo caminho do cimento ao solo. 
     O movimento me alegra. 
     Mas eu odeio seu rosto ao me ver cair. 


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Inspirado em
http://picold.tumblr.com/post/152694018386/darksilenceinsuburbia-debbie-millman-the

Sahge: não consigo comentar em seus posts, mas li aquele que me enviou, obrigada por compartilhar e diga que vai continuar escrevendo!

Um comentário:

Luiz Carlos Sahge disse...

Letícia...

Talvez eu tenha conseguido resolver o problema com meus posts voltando a moderá-los, pois desde que tirei a moderação de comentários, nunca mais recebi nenhum...

E perder comentários de quem tenha sentido minha falta de sentido e vindo, com seu comentário, me ajudar a construir sentido, é perda que sinto muito profundamente.

Voltei com a moderação de comentários, então, caso se sinta motivada a isso, por favor, me ajude a construir um sentido para o caos (que sei que não é só meu).

Quanto a seu texto, comecei a ler e tive certeza, na primeira linha, que eu experimentaria o sentimento de decadência e transformação sem ser obrigado a depois ressurgir como uma fênix, como tão comumente se lê em textos que nos induzem a desconstruir o nosso Eu. Cair... Simplesmente tender para baixo, como é a lei da gravidade e da humanidade...
"Cair nunca foi o problema. O problema é o chão que teima em subir violentamente de encontro à fragilidade de nossos corpos".

Sim, continuarei a escrever. Eu sei e você sabe que isso não é uma escolha nossa (embora eu possa experimentar um período de longa letargia.)
De novo me estendi.
Mas progredi em minha descortesia, porque desa vez, o fiz sem constrangimento.
:)