quarta-feira, 18 de outubro de 2017

23

  Ácido outubro, intestino grosso de 2017, jogue-me ao primeiro de novembro com 23, desintegrada em blocos de alimento assimiláveis, pronta a adubar a terra. Corrosivo outubro, sulco fantástico onde prendem-se restos de fibra, musculatura doutro ser apodrecendo nas nesgas de mim, molde-me massa de escorregar cerâmica, pronta a poluir mais águas. Sagrado outubro, cobre-me de anjinhos e santinhos presos no planeta por serem bons conosco, sufoca-me de rosários e abre-me em pétalas-não-eu no primeiro de novembro.
     Não quero fazer anos.

     Mas os anos fazem-se de qualquer forma, amontoam-se acima e blocudos, pensam ter resistência. Somos madeira, os anos retrucam, São sim peças do bambo jogo, replico, São sim réplicas de um mesmo agora, pretendem raízes mas qualquer movimento brusco lhes deita à mesa. São como jenga, a brincadeira de empilhar madeiricas, reempilhar madeiricas, derrubar madeiricas, empilhar madeiricas. 
     Ofendo os anos numa legítima vontade e cedo minha vez, Que o amigo brinque por mim, estou ocupada a beber, a fumar, estou ocupada a virar um adulto, não tenho tempo para crescer agora. Os bloquinhos sentem o amargo de meus intentos, mas dão-se por surdos como são e voltam-se ao trabalho de sobrepôr. Um dia, o bloquinho que fala, Um dia voltaremos todos à terra e formaremos com ela uma criança de comer, uma criança feliz que come. Um dia, perguntou um bloquinho mudo que ninguém ouviu e seguiu-se então o silêncio. 
     Seguiu-se o longo silêncio de uma noite que durou por todo o mês de outubro e pude eu ouvir cada partícula do nada rasgar minhas células de amar. Aperta aqui, queima ali, dissolve essas mais, quebra, reordena, empacota, expele, guarda algumas para saírem no espirro de aniversário. O restante despache-se pelo reto e saia ao nascer do dia, saia por onde abrir luz e segue a luz.
     Sobrei imediata e infinitamente depois, evacuada. E faminta também, segui gástrica. Sobrei velha de máscara colada na cara, sobrei barata e restos de comida, sobre a mesa embaralhando os blocos de madeirica. Sobrei ali e bem assim, pronta para adubar a terra, gelada no halloween pelas crianças que vi passando travessas dentro de meu estômago a coçar-me. Gostosuras ou gostosuras, travessuras ou duodenos, capeta ou boazinha, balinhas ou bile, falavam misturadas as crianças. Calem-se ou as vomito, gritei de lá de minha morte, vou máto-nas, gritei depois mas menos forte, pensando-me uma morta muito eloquente. 

     Outubro então espirrou-me à rodada seguinte, no topo dos blocos de jenga. Os amigos puxaram-me à mesa e assoprei um muito suntuoso bolo cutucado em varetas de fazer queimação. Esse me vai lotar de amor, imaginei com a boca assoprando como ânus. De fato, brotou-me apenas mais um furo de celulite nas coxas. Feliz aniversário, letícia, disseram Todos Os Santos, comemorativamente dividindo comigo sua data. Urraram num uníssono e macio tom, urraram doce mas em suas cabeças imateriais não puderam entender como fiz parte no grupo, Só pode haver um ressuscitado, entreouvi de um santo descanonizado com a bochecha suja de chocolate.
     Contornado o com quem será num discurso apressado, encerrei dali mesmo, de dentro de mim, a festividade, Esta primeira fatia dou ao bloco mudo de madeirica, insuportavelmente como eu, esmagado na base de sua própria edificação.


Um comentário:

Anônimo disse...

ahhh que bom que você continua a escrever com regularidade. faz tempo q eu leio teus textos. há mó tempão eu li o escafandro de nuvens e depois vim pro escafandro dela. acho que te encontrei pelo blog de uma antiga seguidora, a krystal (sahge tb é seguidor dela, sempre leio os comentários dele lá e agora vejo uns por aqui). só queria dizer msm que adoro teus textos, sempre me inspiram pra caramba. por isso vez ou outra eu apareço aqui com meus "aqualungs" (hahaahah faz tanto tempo que eu leio o blog q quando penso em escafandro relaciono eles só a teus textos, por isso me apossei de um outro tipo de equipamento pra mergulhar aqui). Sobre aniversários... teu a tua idade e também os detesto. Abraços.