segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Se eu morrer inesperadamente

  A realidade quebra e atropela quando o ideal atrapalha. 
    Essa história real dirige-me por dentro dos vasos de circular sangue como carros numa avenida larga quando já é tarde e o vermelho do sinal não nos para, apenas guia, Vem de encontro que sou o que és. 
    Escrevo de pessoa eu mesma pois o contrário sai como mentira, coisa que de fato faria-me dormir melhor, não fosse o péssimo jeito de dormir que já tenho. Acordada de um transe de encaminhar espíritos desencarnados à passagem, voltou minha amiga ao banco do passageiro ouvindo silêncio e minha voz. Tomamos a curva necessária do caminho e nossos personagens em pé, rua curta e escura, o casal num forçado nó sobre o asfalto e apelos, a mulher nos agarrava pelo vidro entreaberto de meu lado oposto, Deixa entrar com vocês, ele vai me matar.
    Confusão e medo e pés confusos que não faziam arrancar nem estacionavam. Ligo os piscantes da traseira e ouço do homem, ele só tem 22, Sobe nessa moto agora. Não posso abrigá-la em meu carro e não posso deixá-la ali. Faço-a então andar colada ao carro até uma esquina movimentada, esquina com bar, o rapaz atrás de nós, o homem sempre sombra de nós. Atesto num beliscão mental que há sempre um homem que nos sobra. 
    Some aquele fim de menino bar adentro fazer misteriosa e inadiável coisa, ao que resta sua mulher, manifestadamente e por posse sua mulher, resta ali num concreto meio-fio. Fora do bar e fora de si, se estar aquém é conceito e sensação de absoluto estado, fora e ali ela perdura, parada, respirando, assustada como eu e a amiga. Nesse momento fica brutal e imperceptível a diferença entre nós três, viramos mulher e isso é tudo.
    Vejo nascer por dentro da cabeça dela, clemente e não treinada em escola, a tese de que prisão é condição tão eterna quanto inescapável e que esconde-se mesmo dentro de nós. Vejo num aborto espontâneo as bases de seu precário subconsciente tremerem e sangrarem, invisíveis, olhos fora. Uma sociedade em volta abençoada em ignorância passa por ali apressada, envolta numa demência que fisga-me de inveja. Ninguém desacelera por nós. Ninguém nos espera ou nota, na rua movimentada com bar ninguém nos salva. 
    Mas um carro encostou, branco e habitado e encostou, num inverossímil milagre engoliu a mulher e partiu, deixando-nos duas, rachadas em alívio e horror, como que bifurcadas. 
    Ponho de volta a roda a girar, meio de rua não é estacionamento aos desgraçados, respiro em marcha à ré e primeira marcha, solto na descida o carro em segunda. Que nos vem acompanhando o rapaz em sua moto. É impossível convencê-lo de que sua mercadoria não está aqui, encolhida nos bancos, dobrada no porta-malas, borrada no insulfilm. Fecha-me, passa-me, cotuca as janelas, freio e freia ele, piso fundo e vem atrás, jogo-me de lado, ele não tomba. A amiga, a esta altura, a pobre amiga já derretida e transformada em anjo esperto, dita-me o que fazer, Segue buzinando que na avenida a delegacia não se fecha. 
    É o que concedemos num orquestrado alarde, daí a mesclar-se no trânsito à frente o motoqueiro que some bairro seguinte. Pode ser que nos aguarde em volta e pode ser que volte ali. Pode ser qualquer destino possível naquele instante de frenesi. O polícia calmo como o descaso em pessoa diz que a escolta até nosso apartamento, dali a três quadras ou 50 segundos, conforme preferência, é irrealizável. 
    Seguimos tão a sós como antes da primeira curva de apresentação, apesar de mais amedrontadas, porém, com menos medo do que antes, mesmo com toda a capacidade respiratória de quem contadas vezes semanais corre numa esteira de borracha, tremendo dentro do veículo tremendo como a sustentar ou soltar o peso de uma debatível ajuda. Fico sem saber se ajudamos. Fico sem saber como puxar com a mão o freio.
    Verdade é que por tempo indefinido estarei a dirigir olhando placas de moto, voltando mais cedo à casa, desconfiando se aquela mulher, que dizia Ele não é ruim, é só ciumento, se ela ouviu o que eu lhe disse, Some deste homem, isso precisa acabar. 

Um comentário:

Luiz Carlos Sahge disse...

lìvido, lendo, vendo, vivendo...
E sem entender (sentimento muito frequente) como alguém que "ama" persegue, aterroriza (e não aterriza na consciência de quem ama não mata)...

Passou um filme noir pela minha cabeça em transe...

Há uma beleza hipnótica nas suas linhas, estranhamente divorciada daquilo que elas contam; e eu fiquei na dúvida se acho belo ou trágico ou ambos ou se não acho nada e me limito a sentir essa vergonha corriqueira que sinto sempre que leio o atroz no suposto do "amor".

Vontade de jogar em algum canto esse não-sei-o-que que nos faz fera e me sentir simplesmente humano, porque há amor e há "amor", e por inexperiência em um e aversão ao outro, não sei dizer se já amei de fato ou na imaginação...