sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

a dieta do pó

     que a empregada veio tem quase quinze dias, disse a mãe. você fica nesse apartamento e bem podia catar uma vassoura, o chão de casa parece o chão de um museu triste. a filha ouvia, sentada nos tacos de madeira, atirando um gato de pelúcia em miniatura para o cão tosado rente. o calor, motivo do tosado cão caro, desses que viram tapete quando esparramam para deitar, o calor engodou o cão caro de vira-lata. o calor hoje tinha misericórdia, roupa arejada bastou e queixa não serviria. 
     a filha lembrou de um professor, dono de exemplar autoconfiança e estrangeiro de são paulo, ele dizia quase toda aula, com ares de ineditismo, que em campinas para cada pessoa existe um sol. se não toda aula ele dizia, feito surpresa, em campinas cada um tem um sol para si. cá estou nesse chão e muito limpa, conversou para dentro em silêncio a filha. o cão também não nota esse dito imenso pó, tampouco se dedica ao que não lhe presta à fome. ainda para dentro pensou que no apartamento também estava a mãe, também estava a vassoura, e aquela não seria empregada se vem duas vezes em um mês, se tanto, e só quando acionada. o que não via era a mãe levantar-se, engolir a recomendação a praticá-la. se eu fosse uma bruxa inventora, concluiu, faria uma vassoura de sumir com reclamações janela afora.
     estava a filha mesmo muito limpa, cheirando a desodorantes de rasgar o céu. anos antes aprendera na escola siglas interessantes de partículas que desvirginavam o céu daqui para um céu mais distante, siglas que faziam o sol entrar com mais violência e sair com mais esforço. quero estar em são paulo, gemeu a filha de novo para dentro de si. era dos hábitos insuportáveis esse que tinha de pensar muda e sem descanso. quero estar em são paulo onde se pode dividir o sol com alguém. e precisamos ver essa bagunça fazendo aniversário no quarto do meio, rezingou a mãe.
     a filha subiu dos tacos da sala à cama do quarto. levantou-se por si mas o que sentia era uma inconsciente expulsão do convívio anterior. o cão com fome de tudo menos pó a seguiu e sentou-se amuado ao pé do móvel. pelo menos não lhe pedem para varrer, discursou motivacionalmente a filha, que do cão era mãe. após alguns segundos de confuso e engajado contato visual, ele soltou a cabeça às patas a passou a lambê-las num obcecado ritual que a filha não conseguia reprimir, pois faltava-lhe o que oferecer no lugar daquela séria tarefa. pulou da cama e posou de pé, de costas ao espelho com o pescoço torcido, espremendo as nádegas. contava os graus de suas celulites com seus furinhos cruciantes, essas porras não acabam nunca. o cão a olhou. essas porras não se dissolvem, exercito-me e cuspo o açúcar e não se dissolvem. 
     era arrastando-se pelo tempo que a filha montava sua vida. podia enxergar o mundo de um jeito realmente seu, em dados dias conseguia até não afetar-se com palavras, rejeições e redes sociais. andava por terreiros espíritas e já quase não ligava quando a mãe lhe recomendava culto menos horroroso. sabia mesmo que dentro de si era capaz de vinte vezes mais, conforme ouvira de um mark divine, que também falava que as três bases de uma vida sem preguiça eram treino, sono e alimentação. alimentava-se bem, dormia as horas que o médico falara e treinava com afinco. por que então esse insistente incompleto. de onde vem essa oscilante vontade de ora insistir, ora desistir. vou botar-me de empregada macumbeira, com minha vassoura de limpar lamúria, vou erguer-me essa bruxa inventora de minha casa, falou ao cão que em sua mudez decerto pensava suas próprias insatisfações.
     a filha pegou na vassoura porque ser como a mãe lhe dava preguiça.
     com a janela aberta a empurrar para dentro da sala um pó novo, a filha limpou os tacos de madeira. a mãe enfeitava-se para um trabalho externo, mais nobre, no quarto fechado ao lado. o sol abriu-se nas panturrilhas torneadas da filha, rasgando em sombra o contorno muscular que sabia trabalhar e sustentar-se. o sol estava ali e era só seu. um sol inteiro, só para ela. a filha, fortuitamente magnânima, varria o pó antigo. num assombro sentiu-se grata, e disse em seu pensamento silencioso, endereçado à mãe, sou-lhe muito grata por trabalhar e dar-me casa. sou-lhe muito grata por reclamar e dar-me trabalho. esparramou-se depois feito tapete com o cão engodado pelo chão limpo. ei, trocinho, a filha brincou, um dia não vai ter mais pó para varrer, porque o sol vai engolir a terra. um dia, nem dia haverá. e atravessou ali a mãe, dizendo tchau, trancando-se do lado de lá da porta. apenas depois de determinar, o quarto do meio deste final de semana não passa.

Um comentário:

Luiz Carlos Sahge disse...

Cara letícia,

Eu não tenho cão (prefiro gatos), minha mãe me ignorou a vida toda (era capaz de ela mesma limpar o pó em derredor de mim deixando, depois que eu me levantasse do chão, aquela silhueta que dir-se-ia falar de um homicídio consumado e investigado) e eu sempre morei em casa.

Então é difícil explicar pra mim mesmo como posso sentir tanta simpatia pela tarde de sol de uma garota alhures. Como se fosse eu nesse papel, quando na verdade, tendo filha adolescente, minha simpatia deveria ser mais pelo lado da mãe. (rsrs)

Palavras mágicas como sempre, letícia...