sexta-feira, 22 de março de 2019

deixo de dizer coisinhas
num impulso de soterrar encolho
os termos o ombro direito mais
pensei que falei mas foi um respiro
espero a hora de tornar-me nascida
exterior e proclamada
aguardo e sem dar um pio
relaxo o trapézio gemendo 
mentalmente
é o lado de meu pai a naturóloga
explicou que é mais pesado
preciso alinhar-me com ele então
o ombro direito fará silêncio

canto o dia inteiro

tenho a certeza os vizinhos me odeiam
escolho as músicas menos agudas
para não aguentar e tocar as mais
na hora de gritar desafino
se estou no carro acerto
imagino os vizinhos ressentidos deixo a voz quebrar 

perguntavam o que seria quando 

crescesse eu dizia artista plástica
uma mulher riu chamou-me pobre
minha mãe riu com ela era cliente
pensei que minha mãe pensasse também 
que arte era ofício de falido
falei mesmo assim muitas vezes
depois que seria artista quem sabe
uma escritora ou cantora
escondida agora nos bolos e pratos
falida pensando na cliente
na impecável educação de minha mãe
lembro-me da risada baixa
minha conta no vermelho 
ela acertou

sou como os besouros no concreto

erguendo vinte vezes meu peso
um dedo humano poderia petelecar
minha carga para longe 
mas um humano não consegue erguer
metade de seu próprio peso
sou como os besouros de barriga 
para cima esperneando
mudo o mundo muito pouco ninguém me 
vê ou ouve
mas aqui estou me contorcendo

arrumo ao menos memória alinhada

acúmulos dos meses próximos
quero expressar-me até o fim
é impossível dizer o que tenho
então apenas sou
insatisfeita e contemplada
dissonante do que persigo
muda como as sementes na chuva
pronta para quase falar

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